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Ricardo Abramovay

O que será a alimentação pós covid-19? Weintraub desconhece o Brasil

Ricardo Abramovay

07/04/2020 04h00

O mundo precisa estar mais vigilante do que nunca para que a produção alimentar global contribua para a saúde das pessoas e não para a disseminação de doenças. Para isso, é necessário enfrentar uma mentira e uma falácia expressas pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em conversa recente que manteve com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e que provocou nova crise diplomática com a China.

A mentira é a sugestão de que a venda e o consumo de animais vivos, muitos dos quais selvagens, expostos em condições sanitárias ameaçadoras e impondo-lhes sofrimento impiedoso, ocorre na China e não no Brasil. Reportagem recente do excelente Infoamazonia mostra que a destruição florestal (além de colocar populações humanas em contato com patógenos contra os quais elas não possuem anticorpos),  abre caminho a feiras clandestinas como a que foi desbaratada em novembro de 2019 em Manaus e que vendia macacos, jabutis, aves, quatis, corujas e cachorros. Em setembro do mesmo ano, uma quadrilha foi pega no Parque Nacional do Jaú com carne de anta, tartarugas e seus ovos.

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Segundo estimativas da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, citada pela reportagem do Infoamazônia, nada menos que 38 milhões de animais selvagens são retirados da natureza a cada ano no Brasil. O ministro parece mais preocupado em inflamar suas redes sociais do que em respeitar a sobriedade e o equilíbrio que o exercício de seu cargo deveria supor, mas ainda assim, seria bom que ele conhecesse um pouco a realidade de que fala.

E, além da mentira, qual a falácia exposta por Weintraub? Ela está no pressuposto de que a criação de animais em cativeiro é solução para garantir uma alimentação livre de patógenos causadores de doenças em seres humanos. Há dois problemas com essa afirmação. O primeiro é que um dos prováveis efeitos da atual pandemia é que a exigência de qualidade e de rastreamento do consumo alimentar vai-se ampliar. E animais criados soltos, em condições de bem-estar, com sua dignidade respeitada, é e será cada vez mais valorizado pelo consumidor. Até alguns anos atrás, essa era uma preocupação de adeptos do veganismo e de parte do movimento ambiental. Mas nos dias de hoje, são temas estratégicos para grandes fundos de investimento como os que se reúnem na FAIRR, uma rede de investidores com uma carteira de US$ 20,3 trilhões, dos quais depende boa parte do financiamento do agronegócio global.

O segundo problema é a criação em cativeiro que se consolidou, mundo afora, sob um modelo cuja escala tornou-se ameaçadora não apenas para a dignidade animal, mas para o meio ambiente e a saúde pública. Segundo pesquisa recente da FAIRR, 15% das emissões globais de gases de efeito estufa originam-se na produção de carne e leite, que também respondem por imenso consumo de água e por mudanças, frequentemente destrutivas, nos sistemas de uso do solo.

Além disso, como bem mostra um relatório da ONU Meio Ambiente, é crescente a preocupação dos profissionais em saúde pública com o aumento da resistência à eficiência dos antibióticos, como forma de combate a algumas das principais enfermidades humanas. Morrem anualmente 700 mil pessoas, vítimas da baixa efetividade das drogas antimicrobianas no combate a patógenos. E o que isso tem a ver com alimentação saudável e segura?

Tudo: os animais consomem nada menos que 70% dos antibióticos que a indústria produz. Ora, 80% dos antibióticos consumidos são excretados na urina e nas fezes. Os sistemas de tratamento e purificação de água não conseguem eliminar a presença dos antibióticos. Consequentemente nós acabamos por ingeri-los. Na criação de peixes em cativeiro, a ONU Meio Ambiente estima que o vazamento chega a 75% dos antibióticos usados. A própria indústria farmacêutica revela profunda preocupação com o assunto e trabalha, em coordenação com a ONU, no enfrentamento do problema.

Isso quer dizer que os cuidados com a segurança sanitária da produção de carnes em escala industrial estão trazendo ao mundo o aumento da resistência antimicrobiana, definida no documento da ONU Meio Ambiente como a que ocorre quando "um microorganismo passa a resistir aos efeitos de um agente antimicrobiano e multiplica-se em sua presença". Que parte fundamental do consumo global de proteínas animais esteja associada a riscos tão impactantes mostra a urgência de que o modelo agroindustrial contemporâneo seja profundamente transformado.

O padrão de consumo de carnes do século 20 é uma das mais emblemáticas expressões de como o avanço da ciência e da tecnologia (por meio dos indispensáveis antibióticos) pode se converter em ameaça. Enfrentar essa ameaça vai exigir mais rastreamento, mais qualidade, mas também formas de criação que respeitem a dignidade dos animais, que não destruam os recursos ecossistêmicos de que dependemos e que não ameacem nossa saúde, sob o pretexto de nos fornecer proteínas a baixo custo.

Sobre o Autor

Professor Sênior do Instituto e Energia da USP. Autor de "Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza" (Ed. Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay